Os números impressionam: em apenas dez dias, 506 pessoas enviaram mensagens para a força-tarefa do Ministério Público de Goiás que investiga denúncias de abuso sexual contra João Teixeira de Faria, o médium conhecido como João de Deus. Em uma etapa seguinte, cerca de 60 mulheres já tiveram seus depoimentos colhidos por autoridades em diferentes Estados do país.
Os relatos abrangem episódios da década de 1980 até outubro deste ano, segundo informações já divulgadas pelos investigadores e pela imprensa. Mas a lei brasileira pode dificultar processar casos ocorridos há mais de seis meses - antes de junho de 2018.
A explicação para isso está no chamado prazo de decadência, que deixou de existir em setembro deste ano, mas ainda é válido para crimes que ocorreram antes. Nesta segunda-feira, a delegada que coordena a investigação das denúncias contra João de Deus no âmbito da Polícia Civil de Goiás, Karla Fernandes, citou o prazo de decadência para dizer que a maioria das denúncias contra o médium perderam o prazo legal.
Segundo essa regra, as vítimas de um crime sexual tinham até seis meses para declarar às autoridades que desejavam ver seus agressores serem processados. Caso contrário, a polícia e a Justiça não poderiam tomar providências.
Assim, nas denúncias feitas contra João de Deus neste mês de dezembro, o prazo de seis meses englobaria apenas casos a partir de junho.
O escândalo veio à tona no dia 8 de dezembro, no programa do jornalista Pedro Bial, da TV Globo, que ouviu 10 vítimas. No domingo, João de Deus foi preso nas proximidades de Abadiânia, cidade goiana onde criou a Casa de Dom Inácio de Loyola, base de sua atuação como médium, em 1976.
As mulheres disseram que primeiro eram atendidas em sessões coletivas. Em seguida, João de Deus as teria convidado para um atendimento individial, onde os abusos teriam ocorrido.
Interpretação de prazo pode variar
Juristas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que, apesar do prazo de decadência, a Justiça pode entender que crimes ocorridos há mais de seis meses também poderão ser processados. Isso vai depender das circunstâncias relatadas pelas vítimas e também da interpretação legal que será dada aos fatos.
"Em tese, essa é a regra. Mas ainda é prematuro alegar que o prazo de decadência vai limitar o número casos que podem ser alvo de processos", diz Renato de Mello Jorge Silveira, professor titular da Faculdade de Direito da USP. "Esse caso vai suscitar uma grande discussão jurídica."
No julgamento do médico Roger Abdelmassih, por exemplo, condenado pelos estupros de 37 mulheres, em 2010, o prazo de decadência também foi tema de embate. Mas a Justiça considerou que era possível processar o médico mesmo sem o pedido da vítima no prazo de seis meses a partir do crime, porque houve uso de violência.
"No caso de Roger Abdelmassih, todas as condutas criminosas que descrevi foram caracterizadas como violência real. Assim, é como se fosse uma ação penal de homicídio ou roubo, não é necessário que a vítima peça que haja investigação", relata o promotor Luiz Henrique Dal Paz, responsável pelo caso do médico.
Além da violência, outra possibilidade de discussão jurídica é se o abuso tiver ocorrido mediante fraude - por exemplo, se houve alegação de que as ações faziam parte do processo de cura.
"O prazo decadencial começa a correr seis meses após conhecimento da autoria do crime. Assim, se a pessoa foi vítima de fraude e só percebeu que foi abusada após a revelação de outros casos, pode haver a interpretação de que o prazo de seis meses começa a contar a partir dali", exemplifica João Paulo Martinelli, advogado criminalista e doutor em direito penal pela USP.
Por isso, o Ministério Público de Goiás ressalta que não está descartando nenhum caso. Pelo contrário, cada relato será analisado individualmente.
"É importante que as vítimas quebrem o silêncio. Mesmo se os casos forem mais antigos, o Ministério Público vai verificar a viabilidade da propositura de uma ação penal. Além disso, os relatos de casos antigos reforçam o depoimento das demais vítimas", explica a promotora Patrícia Otoni, da força-tarefa do MP.
O prazo de seis meses não limita ações no âmbito privado - por exemplo, pedidos de indenização -, mas pode impedir a condenação criminal. "A pena só é dada para casos que podem ser objeto de julgamento, ou seja, crimes que não prescreveram e que também não tenham o prazo de decadência expirado", diz o criminalista Martilelli.
Em 24 de setembro, alterações foram feitas na legislação e mexeram com a questão da "representação" - termo jurídico usado para se referir à autorização da vítima, no prazo de seis meses, para que o agressor seja processado pelo Estado. Para casos ocorridos a partir dessa data, a ação penal de um crime sexual passou a ser "incondicionada", ou seja, não há mais a condição de que a vítima peça para ser representada. Assim, o prazo de seis meses deixou de existir, mas a nova regra não pode retroagir.
Com essa perspectiva, a Polícia Civil de Goiás decidiu concentrar suas investigações nos casos mais recentes. Em entrevista à BBC News Brasil, o delegado-geral da Polícia Civil de Goiás, André Fernandes, afirmou que a prioridade é concluir ainda nesta semana a investigação de um caso que teria ocorrido em outubro - e que foi usado para fundamentar o pedido de prisão preventiva de João de Deus.
Médium pode ser denunciado por crimes de estupro e violação sexual mediante fraude
A legislação sobre crimes sexuais trata de três tipos fundamentais de delitos. Primeiro, o estupro, cometido mediante violência física ou grave ameaça. Segundo, estupro de vulnerável, quando a vítima não tem condições de oferecer resistência - menor de idade, por exemplo. Nesse caso, não é necessário que haja violência física ou grave ameaça para que o crime seja caracterizado. E, terceiro, violência sexual mediante fraude.
No caso de João de Deus, o Ministério Público diz haver relatos desses três tipos de crimes. "Trabalhamos com a possibilidade de enquadramento dos casos em estupro, estupro de vulnerável e violência sexual mediante fraude. O Ministério Público está estudando detalhadamente caso a caso", diz a promotora Patrícia Otoni.
Já a Polícia Civil diz que os casos a que teve acesso são de violência sexual mediante fraude. "No estupro, a vítima sabe que está sendo molestada sexualmente, porque há violência ou grave ameaça e ela não pode se defender. Já no caso da violação sexual mediante fraude, a vítima não sabe que foi molestada sexualmente", explica o criminalista Martinelli.
O próprio advogado encaminhou ao Ministério Público de São Paulo um caso que poderia vir a ser enquadrado como estupro, de uma mulher que relatou ter sido vítima de João de Deus há mais de cinco anos.
"Nesse caso específico, houve violência física. A vítima foi segurada pelos braços para ser apalpada por dentro da roupa. Além disso, houve ameaça de cunho espiritual. Caso ela falasse alguma coisa, o familiar que ela estava acompanhando para fazer uma cirurgia espiritual iria morrer", relata Martinelli.
Já outros casos podem ser enquadrados como violência sexual mediante fraude. "No caso específico de João de Deus, em que ele eventualmente atribuiu a cura espiritual ao ato libidinoso contra a vítima, isso pode configurar violência sexual mediante fraude. Até porque, se vítima estava naquele ambiente (a casa onde João de Deus atendia como médium e onde teriam ocorrido os abusos), é porque tinha uma crença muito forte. Isso já é suficiente para a vítima ser induzida ao erro", completa Martinelli.
Tempo de prescrição das penas cai pela metade
Outra variável jurídica importante no caso é o tempo de prescrição dos crimes - a lei estabelece que só é possível punir um acusado dentro de um prazo máximo entre a data do crime e a data da condenação.
Cada tipo de crime tem um tempo de prescrição. No caso de estupro de vulnerável, são 20 anos. Estupro, 16 anos. E violência sexual mediante fraude, 12 anos.
Mas o tempo de prescrição cai pela metade quando o réu tem mais de 70 anos. É o caso de João de Deus, que tem 76 anos.
Por isso, "o foco do Ministério Público é de 10 anos para cá. Mas o MP está sendo procurado por vítimas muito mais antigas. Elas também serão ouvidas", diz a promotora Patrícia Otoni. Ou seja, o prazo que está pautando o Ministério Público é o de prescrição, não o de decadência, abrindo margem para inclusão de mais casos.