“Eu achava que era minha culpa por não corresponder às práticas sexuais dele. Ele se aproveitava e fazia cada vez mais coisas que eu não queria. Eu chorava, pedia para parar, mas não adiantava”. O relato é da operadora de caixa M.R.N, de 36 anos que após 14 anos de casada decidiu se separar do marido por conta dos abusos sexuais que sofria. O relato dela se insere em um tema de difícil discussão, o estupro marital. Sem registros específicos e alvo até de divergências jurídicas devido aos direitos do cônjuge, o estupro cometido dentro do casamento ainda é um desafio no combate à violência contra mulher.
Nas pesquisas sobre violência sexual, a maioria dos indicadores aponta que as agressões costumam ser cometidas por alguém próximo da vítima. Quando a questão chega aos companheiros e envolve a questão sexual, entretanto, a sociedade tem dificuldade para lidar com o tema.
“O machismo ainda é muito forte. Sempre achei que a culpa de não querer fazer as coisas em determinados momentos ou daquela forma fosse minha”, relembra. Por conta disso, ela se manteve em silêncio por mais de uma década.
Ela conta que dormir chorando após relações sexuais forçadas era comum em seu casamento. Ser acordada no meio da noite com práticas com as quais ela não concordava também. “Ele não me ouvia dizer não. Também não parava não importava o quanto eu pedisse ou chorasse”, diz, ainda aos prantos com a lembrança.
A “descoberta” se deu quando ela passou na faculdade e procurou uma psicóloga do campus para falar sobre o problema. “Ela só me fez confessar o que eu não queria: que ele abusava de mim. Quando eu entendi que o que eu vivia não era normal, quis me separar”, revela. Hoje, ela faz terapia e acompanhamento psiquiátrico para superar o trauma.
O acompanhamento é feito pelo Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam), do Governo do Estado, onde ela encontrou apoio e ajuda profissional. “Muitas pessoas tentaram abafar a situação, principalmente na igreja. Não é fácil sair disso, mas aqui existem pessoas preparadas para nos ajudar”, recomenda.
Violência dentro de casa
Levantamento do Instituto DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher Contra a Violência, realizado no ano passado, apontou que em 74% dos casos de violência contra a mulher (incluindo todo tipo de agressão), os autores são pessoas que têm ou tiveram relações afetivas com a vítima.
Conforme o levantamento, deste percentual 41% refere-se ao atual marido, companheiro ou namorado, apontado como autor da agressão. Outros 33% são relacionados aos ex-companheiro. Grande parte dos casos não é reportada. De acordo com a pesquisa, isso ocorre por medo, dependência financeira e preocupação com a preocupação dos filhos, além da vergonha da agressão sofrida.
No caso de violência sexual, a situação é ainda mais delicada. Isso porque o próprio Código Penal estabelecia, até 2003, como “dívida conjugal” a recusa do cônjuge em manter relações sexuais. A operadora de caixa mencionada no início desta matéria lembra que até mesmo a Bíblia era usada pelo marido como argumento para forçá-la, por saber de sua fé cristã. “Ele dizia que meu corpo pertencia a ele e eu não podia me negar. Hoje faço parte de um grupo de feministas cristãs que não têm medo de tratar desse assunto e sei que não é dessa forma”, esclarece.
Assim como grande parte das vítimas desse tipo de violência, ela tinha medo de que ninguém acreditasse que era violentada por se tratar do cônjuge. “Fiz a denúncia na Delegacia da Mulher e quando vi que acolheram foi um alívio. Hoje estou sob efeito de medida protetiva”, diz.
O que diz a lei
A legislação atual é clara em relação ao crime de estupro, mesmo estando inserido dentro de um relacionamento. De acordo com o Código Penal Brasileiro, com redação dada em 2009 ao artigo 213, é caracterizado como estupro o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A pena prevista para esse crime é seis a dez anos de prisão.
Na Lei Maria da Penha, a descrição é ainda mais específica e elenca entre as formas de violência contra a mulher, a violência sexual “entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força”.
No texto da lei, estão previstas ainda como crime condutas que “induzam a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação, ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”.