24/07/2023 06:30
Top Literário: o que aprendi com Rita Lee entre viagens em disco voador e animais exóticos
Audiobook narrado por Mel Lisboa nos leva a uma conversa íntima com a rainha do rock nacional
*Atenção: não existe spoiler quando é vida real, mas fica o aviso!*
Quando Rita Lee faleceu, eu estava ouvindo sua primeira autobiografia. Coincidências da vida. Justo quando eu me apegava àquela senhora Rock'n'Roll, ela partia, em um disco voador, encontrar a primeira família.
Foi difícil não ler nenhum in memorian para trilhar meu próprio caminho por seu legado. Ainda mais em uma fase que passo meses no mesmo livro. Mas consegui.
Eis o que aprendi com Ritinha, apelido dos íntimos: tente não ser tão autocrítica! Tente, pois isso é um desafio diário. Para escrever além do factual, tenho que lembrar que feito é melhor que perfeito toda vez. Aposto que nenhum especialista em música ou tabloide conseguiu ser tão cruel com Rita Lee como ela própria.
Começando pela infância, onde não há nenhum comentário do jornalista Guilherme Samora para nos apresentar um contraponto, Rita é terrível. Apenas a própria poderia dissecar seu passado antes da fama. Odiei Rita, ‘moleca encapetada’, com o perdão da palavra. Era toda ousadia e traquinagens além do aceitável. Contos engraçados de ouvir em um bar. O terror de qualquer mãe ou pai que invista na educação de um filho. Samora só pontua já no fim da adolescência, que ela também era uma esportista e tanto, além de amorzinho da família.
‘Que mulher irritante’, pensei neste início. Mas como ela, sou capricorniana, se você acredita nisso, e não desisti. Quem era essa pioneira em tantas coisas?
Quando Rita começa a descrever o início da vida adulta, o sucesso cheio de mágoas com Os Mutantes, sinto uma diferença na atmosfera. Não era a criança pavorosa como se descrevia. Era autocrítica demais. A caçula que conquistou o carinho do pai inicialmente linha dura não podia ser assim tão infernal. Ovelha negra da família apenas por se sentir diferente, nada de falta de amor naquele lar. (Inclusive, minha decepção em saber que a música foi sobre o sentimento de ovelha perdida e não por uma expulsão de casa).
Rita Lee foi moleca, encantadora, resistência na ditadura, apaixonante, romântica, protetora dos animais. Também foi rebelde sem causa, alcoólatra, viciada em drogas – e não tentou esconder nada disso. Não sei qual o impacto do estupro na primeira infância nos vícios da adulta, mas vejo uma mulher de sucesso que sempre menosprezou o próprio impacto no mundo.
Lee se reconhecia talentosa, não precisa fingir humildade com tantos sucessos, trilhas sonoras em novelas, carreira internacional. Mas se culpava muito por não ser “mais”. Presa durante a ditadura, da qual ela debocha na biografia inteira, em nenhum momento, ela considera seu papel de resistência intelectual. Olha pra si e vê uma jovenzinha ‘rebelde sem causa’ que gostava de fazer música. Como se sua vida inteira não fosse resiliência, pioneirismo, coragem de ser quem se é. Um ser político, mesmo que não se reconheça desta forma.
Ah, o amor. Rita teve coragem de mostrar que as mulheres são seres sexuais tanto quanto os homens. Ofendeu os bons costumes – da época - e incentivou hábitos que envelheceram mal para o público de 2023. Mas não é isto ser humano? Errar e acertar. A vida nunca é preto e branco, antagonismo entre certo e errado.
Das curiosidades, destaco 'Desculpe o Auê', um bilhete de desculpas a Roberto Carvalho, que voltou musicado pelo compositor e virou hit. Que baita casal! Também os animais exóticos da família, que adotou de jaguatirica a cobra - outros tempos pessoal - e o simpático Charlie, dentista gringo e pai da rainha do rock. Adoraria um livro dedicado só a esse doutor!
Rita, ainda preciso ler sua segunda autobiografia. Tomara que tenha sido mais gentil consigo mesma.
E, em tempo, se alguém for adaptar a cantora para os cinemas, Mel Lisboa não está apenas aprovada pela própria, como narrou o audiolivro como se fosse a própria, até em seus mínimos maneirismos. Não ouvi Mel Lisboa, ouvi Rita Lee, em uma conversa de amigas. Pena que eu apenas podia/posso ouvir. Se não posso dar um chacoalhão nela, que o faça em mim mesma.