Política

21/06/2019 19:00

MPF promete recorrer contra decreto que trata das demarcações indígenas

Bolsonaro deu tarefa para ministra Tereza Cristina (Agricultura); ele afirmou ainda que não vai criar novas reservas

21/06/2019 às 19:00 | Atualizado 22/06/2019 às 08:29 Celso Bejarano, de Brasília
Índios durante protesto em MS - Divulgação

Quarta-feira passada (19), o presidente Jair Bolsonaro (PSL), por decreto, tirou, de novo, do Ministério da Justiça, a tarefa de agir nas demarcações de terras indígenas. A decisão do presidente determinou que a partir de agora quem cuida do assunto é o ministério da Agricultura, pasta chefiada pela campo-grandense Tereza Cristina. A troca desagradou lideranças indígenas e o MPF (Ministério Público Federal), que prometeu reagir à medida, indo, se preciso, à Justiça, para desfazer a ordem do mandatário.

Demarcação de área indígena era missão do Ministério da Justiça até a chegada de Bolsonaro no poder. Ao assumir, em janeiro deste ano, ele mandou a causa para a pasta da Agricultura. Ocorre que no Congresso Nacional, o decreto do presidente caiu por força de lei criada pelo Senado e a Câmara dos Deputados.

Mas isso não bastou, Bolsonaro reeditou o decreto, derrubando, assim, a medida aprovada pelos parlamentares.

Uma das discórdias dos povos indígenas e do MPF é o fato de o ministério da Agricultura ter, por ofício, cuidar dos interesses do produtor rural, ou seja, justo a classe contrária às demarcações das áreas indígenas.

Em Mato Grosso do Sul, território que abriga a segunda maior população indígena do país, com cerca de 80 mil índios, há históricos de conflitos e guerras judiciais por terra envolvendo fazendeiros e índios nas cidades de Sidrolândia, Dois Irmãos do Buriti, Iguatemi, Paranhos, Douradina, Antônio João, Juti, Caarapó e Dourados.

REAÇÃO

“Às já identificadas inconstitucionalidades soma-se agora o desrespeito ao processo legislativo, que afronta a separação de poderes e, em última instância, a ordem democrática. A 6a Câmara [do MPF] prosseguirá na defesa dos direitos constitucionais dos povos indígenas e do Estado de Direito por todos os meios institucionais que estiverem ao seu alcance”, diz a nota publicada nesta sexta-feira (21), documento assinado pelo sub-procurador-geral da República, Antônio Carlos Alpino Bigonha.

Bigonha aponta, ainda, que Bolsonaro não poderia ter reeditado o decreto da demarcação por já ter sido antes rejeitado: “o chefe do Poder Executivo da União não pode reeditar medida provisória que veicule matéria constante de outra medida provisória anteriormente rejeitada pelo Congresso Nacional.

Na Câmara dos Deputados ao menos cinco parlamentares avisaram que vão à Justiça contra o decreto de Bolsonaro.

Ontem, quinta-feira (21), em evento no interior de São Paulo, Bolsonaro reforçou o desejou de manter o decreto. "Quem decide na ponta da linha sou eu e eu assino decreto demarcatório. Eu não vou assinar nenhuma nova reserva indígena no Brasil". Ele disse ainda que não pretende criar nenhuma reserva indígena em sua gestão.

Depois afirmou que quer "integrar o índio à sociedade e que o índio quer é televisão, internet, cinema".

Leia a íntegra da nota do MPF:

"Nota pública

A 6 Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais) manifesta sua perplexidade com o teor de Medida Provisória n. 886, de 18 de junho de 2019, publicada na data de hoje, que que “altera a Lei nº 13.844, de 18 junho de 2019, a Lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991, a Lei nº 12.897, de 18 de dezembro de 2013, a Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, e a Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016, para dispor sobre a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios.”

A Medida Provisória altera o texto da Lei n. 13.844, de 18 de junho de 2019, para estabelecer que "constituem áreas de competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento": (...)"reforma agrária,  regularização  fundiária  de  áreas  rurais,  Amazônia Legal, terras indígenas e terras quilombolas" . Reiterou, dessa forma, disposição existente na Medida Provisória 870, de 1o de janeiro de 2019, rejeitada pelo Congresso Nacional em maio de 2019.

De acordo com a Constituição Federal (artigo 62, parágrafo 10), é proibida a reedição, numa "mesma sessão legislativa", de medida provisória que tenha sido rejeitada ou tenha perdido a eficácia. Embora a Medida Provisória 870 tenha sido enviada ao Congresso na Sessão Legislativa anterior, ela foi rejeitadana atual sessão legislativa, enquadrando-se, portanto, na vedação constitucional.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o tema reiteradas vezes.

Destacamos três precedentes sobre o tema, por sua relevância.

No julgamento da ADI 2.010, o Relator, Ministro Celso de Mello firmou o entendimento do STF sobre o tema, ao afirmar que “O presidente da República, sob pena de ofensa ao princípio da separação de poderes e de transgressão à integridade da ordem democrática, não pode valer-se de medida provisória para disciplinar matéria que já tenha sido objeto de projeto de lei anteriormente rejeitado na mesma sessão legislativa . Também pelas mesmas razões, o chefe do Poder Executivo da União não pode reeditar medida provisória que veicule matéria constante de outra medida provisória anteriormente rejeitada pelo Congresso Nacional.

Já na ADI 3.964, julgada em 11.4.2008, o Ministro Ayres Britto observou que “Tese contrária importaria violação do Princípio da Separação de Poderes, na medida em que o Presidente da República passaria, com tais expedientes revocatório-reedicionais de medidas provisórias, a organizar e operacionalizar a pauta de trabalhos legislativos. Pauta que se inscreve no âmbito do funcionamento da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e, por isso mesmo, matéria de competência privativa dessas duas Casas Legislativas”.

No mesmo sentido caminhou a Suprema Corte, sob a relatoria da Ministra rosa Weber, ao apreciar a Medida Provisória n. 768, que dispôs sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios no governo anterior (Presidente Michel Temer). No julgamento da ADI 5.709, ocorrido em 27 de março de 2019, o Supremo Tribunal Federal entendeu que trazer novamente matéria já rejeitada constitui “ofensa ao princípio de separação de poderes e transgressão à integridade da ordem democrática”. Ressaltou, ainda, que “ao trazer novamente a matéria como forma de burla à Constituição, houve a contaminação da medida provisória impugnada em sua totalidade, porque a vedação resulta de vício de origem e, assim, abrange todo o ato normativo.”

Ressalte-se que a 6 a Câmara demonstrou, por meio da Nota Técnica n. 01/2019/6a CCR, a inconstitucionalidade dos dispositivos constantes da Medida Provisória n. 870, de 1o de janeiro de 2019, e reeditados na Medida Provisória n. 886/2019, e defendeu a manutenção da Funai e da demarcação de terras indígenas no Ministério da Justiça. Às já identificadas inconstitucionalidades soma-se agora o desrespeito ao processo legislativo, que afronta a separação de poderes e, em última instância, a ordem democrática.

A 6a Câmara prosseguirá na defesa dos direitos constitucionais dos povos indígenas e do Estado de Direito por todos os meios institucionais que estiverem ao seu alcance.

ANTONIO CARLOS ALPINO BIGONHA
Subprocurador-Geral da República Coordenador da 6a CCR/MPF"