09/12/2018 18:10
A dor que não sai no jornal: médico cubano atende indígenas por telefone e faz apelo ao governo
Comunidades tradicionais têm sido as mais afetadas pela mudança no Mais Médicos; em MS, 11 profissionais tiveram de interromper trabalhos
O fim da parceria entre Cuba e Brasil e a saída dos médicos estrangeiros que atendiam em municípios de difícil acesso e áreas de risco instantaneamente surtiu efeito na rotina dessa cadeia de troca. Em Mato Grosso do Sul, 11 cubanos atuavam em comunidades indígenas desde a implantação do programa Mais Médicos, em 2013.
As histórias da vida de cada um dos 339 médicos que atuavam pelo Mais Médicos nos Dseis (Distritos Sanitários Especiais Indígenas) e preocupação que se segue por si só explicam a complexidade da situação. Isso porque as vagas deixadas por eles demoram a ser preenchidas por brasileiros.
Por telefone
No dia 24 de agosto daquele ano, no primeiro voo com os médicos cubanos a pousar em solo brasileiro, chegava Carlos Alberto, que largou a própria terra para trabalhar por aqui, onde diz ter encontrado muito mais do que um lugar para exercer a medicina. Após cinco anos conhecendo de perto a realidade das populações indígenas, ele lamenta o final do ciclo.
O médico se especializou em saúde indígena pela USP (Universidade de São Paulo) durante três anos e atuava até então na aldeia Kaxixó, em Martinho Campos, Minas Gerais. Afastado de suas funções, agora tenta ajudar como pode e até mesmo por telefone.
“Não consigo trabalhar e os problemas se acumulam, há pouco tempo teve um surto de diarreia e pessoas morreram. Continuamos com bom relacionamento com equipes, mas não temos mais permissão para atender, ajudamos os enfermeiros por telefone, porque três dos médicos brasileiros que se apresentaram desistiram”, diz.
Ainda que as vagas sejam preenchidas, uma das principais críticas ao encerramento abrupto do programa é a falta de conhecimentos específicos da saúde e cultura indígena. Em cinco anos, Carlos afirma ter nutrido amor pelos costumes e tradições dos povos originários brasileiros após atuar em diversos cantos do país.
“Estudamos antropologia, a língua, aprendemos a respeitar seus costumes e a ter o comprometimento de uma vida na medicina em sua essência, sem luxos. São pessoas com muita necessidade, com doenças diferentes, pois tem o sistema imunológico e o ambiente diferente. São regiões isoladas e com condições precárias estruturais”, avalia.
Carlos criou amizades e família no Brasil, e é cidadão brasileiro após casar-se no país. A decisão de buscar meios de revalidar a permissão para continuar a trabalhar no país já foi tomada, dentro de sua especialidade, nas comunidades indígenas.
Carta
A transição problemática para a substituição dos médicos motivou carta pública da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) ao Ministério da Saúde. “Não estamos pedindo para ficar em confortáveis salas de atendimentos em grandes cidades, estamos solicitando para seguir nosso esforço e profissionalismo em lugares onde o 90% dos médicos não desejam trabalhar. Eles tiveram a oportunidade e não a aproveitaram. Nós não vamos desistir”, diz um dos trechos.
O órgão destaca que os profissionais têm conhecimentos insubstituíveis, ao menos em curto prazo, por terem feito a especialização em saúde indígena. “Tirar fora profissionais que amam seu trabalho, e tem o foco baseado na cultura de cada povo, etnia, comunidade, que conhecem hoje a morbimortalidade a epidemiologia e até a língua de cada comunidade seria um retrocesso”, completa.
MS
O cacique Genito Gomes, da aldeia Guaviry, em Aral Moreira, a 389 km de Campo Grande, diz que tem receio de que os médicos não queiram trabalhar no interior e em uma cidade com poucos recursos. O município é considerado pelo Diário Oficial do Estado como de extrema pobreza.
“Temos quase 290 indígenas morando aqui na aldeia. O médico cubano morava em Amambai e ele vinha aqui com a Senai a cada 15 dias, mas, pelo menos, tínhamos um profissional por perto, pior seria não ter nenhum. Gostaríamos de um médico para ficar na aldeia. O cubano atendia bem, a única dificuldade era a comunicação mesmo”, disse o cacique.
O último balanço da Secretaria Estadual de Saúde (SES) a que o TopMídiaNews teve acesso, em 5 de dezembro, mostrou que apenas quatro médicos haviam se apresentado para atuar em distritos sanitários indígenas. O prazo para os profissionais se apresentarem e iniciarem o trabalho acaba no dia 14 deste mês.