Em depoimento à polícia, o barbeiro Paulo Sérgio Ferreira de Santana, de 36 anos, autor confesso das 12 facadas que mataram o mestre de capoeira e ativista cultural negro Romualdo Rosário da Costa, 63, conhecido como Moa do Katendê, admitiu que uma discussão política foi a motivação do crime que ele cometeu na madrugada desta segunda-feira, 8, em um bar na Avenida Vasco da Gama, próximo ao Dique do Tororó, em Salvador.
Uma discussão entre Paulo Sérgio, que votou e defendeu o candidato do PSL Jair Bolsonaro à Presidência, e o dono do bar, apoiador de Fernando Haddad (PT), foi o estopim para o fato. De acordo com os depoimentos, o mestre de capoeira, que também optou pelo petista nas eleições 2018, entrou na discussão criticando Bolsonaro, o que desencadeou o fato. O Estado não conseguiu contato com a defesa de Paulo Sérgio.
O autor confesso do crime, contaram testemunhas em depoimento, chegou ao bar declarando voto no capitão da reserva e disse que "o Brasil precisa se livrar do PT". Paulo Sérgio afirmou à polícia que, durante a discussão, foi xingado pelo mestre de capoeira. Após a discussão, ele foi em casa e voltou com uma peixeira, que usaria para golpear a vítima. O barbeiro, que tem dois filhos e morava há dois meses no local, ingeriu bebida alcoólica desde a manhã do domingo e chegou ao bar às 23h, segundo a polícia.
No depoimento, Paulo Sérgio confessou ter atingido as costas e o pescoço do capoeirista. Minutos depois, à imprensa, se contradisse ao afirmar que a discussão teve a ver com uma divergência sobre futebol e não com política.
Um primo do mestre de capoeira, que tentou defendê-lo do ataque, também foi ferido. Germinio Pereira tem 51 anos e foi atingido no braço e levado ao Hospital Geral do Estado (HGE). Ele está sedado, não corre risco de vida. Seu depoimento deve ser colhido pela polícia na tarde desta segunda, na unidade de saúde.
Até agora já foram ouvidos o dono do bar e a mulher dele, além do autor do crime. Os relatos dão conta de que o fato aconteceu por volta de 3h da manhã de acordo com a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA).
Após cometer o assassinato, o barbeiro voltou para casa, informou o órgão, mas o rastro de sangue deixado pelo pé dele levou policiais militares da 26ª Companhia Independente de Polícia Militar até a residência.
Em nota, a Polícia Militar da Bahia (PM-BA) informou que, quando foi encontrado, Paulo Sérgio já estava com uma mochila com roupas no intuito de fugir. Antes de ser preso, ele ainda foi levado para o HGE para ser medicado, pois estava com um corte no dedo, e depois apresentado no Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP).
O barbeiro vai ser indiciado por homicídio e tentativa de homicídio. Ele tinha outras duas passagens pela polícia, segundo a SSP. Em 2009, ameaçou uma criança de 14 anos com uma tesoura após ser abordado pelo garoto, que pedia esmola. Em 2014, ele se envolveu em uma briga de rua.
Mestre de capeira era também ativista cultural
O enterro de Moa do Katendê aconteceu nesta segunda-feira, às 16h, no cemitério da Ordem 3ª de São Francisco, na região da Baixa de Quintas. Amigos e parentes do mestre de capoeira, que também era ativista cultural, chocaram-se com a notícia de sua morte. Ligado a movimentos culturais em Salvador e à militância negra, ele é descrito como "batalhador" e "homem aguerrido" por conhecidos e companheiros de militância.
Mestre Moa do Katendê nasceu em Salvador, em 29 de outubro de 1954, no Dique do Tororó, próximo ao estádio da Fonte Nova. Na capital baiana, conviveu com nomes históricos da da capoeira, os mestres Pastinha, Bimba, Gato, Canjiquinha, Valdemar e outros. Foi aluno diplomado pelo mestre Bobó e iniciou-se na arte da capoeira aos oito oito anos de idade na Academia Capoeira Angola 5 estrelas.
Além disso, Moa do Katendê fundou o bloco carnavalesco Afoxé Badauê em maio de 1978 - fato que mais renderia frutos em sua vida artística. O bloco só desfilaria pela primeira vez no carnaval em 1979, quando Caetano Veloso gravou a música "Badauê" no disco "Cinema Transcendental", em homenagem à agremiação. "Misteriosamente, o Badauê surgiu. Sua expressão e cultura, o povo aplaudiu", diz a letra da canção.
O gestor e pesquisador cultural Chicco Assis, que defendeu dissertação de mestrado na Universidade Federal da Bahia (UFBA) sobre o bloco Badauê, conta que Moa do Katendê começou a carreira artística na década de 1970 e participou de muitos blocos de carnaval, na época de ouro do surgimento dos Filhos de Ghandy e do Ilê Aiyê, até fundar o Badauê.
Tinha relação com grupos multi-artísticos, que incluíam teatro, música afro, dança etc, formando um movimento forte naquele momento, em Salvador. "Moa começou muito cedo a fazer parte desse movimento que explodia em Salvador em relação à cultura negra e afro-diaspórica", explica Chicco Assis, lembrando que ele fazia parte de uma juventude negra muito ativista na época, se relacionando com a pauta política.
"É muito emblemático esse fato, porque Moa era uma pessoa que sempre foi uma figura muito pacífica. Com esse avanço do fascismo no Brasil, uma figura como essa ser silenciada é muito emblemático e representativo. É muito triste a gente estar passando por isso", afirmou o pesquisador cultural.
O presidente da Fundação Gregório de Mattos, entidade que administra a cultura na prefeitura de Salvador, Fernando Guerreiro, lamentou a morte do mestre de capoeira. Ele afirmou, por meio de nota, que "o radicalismo e intolerância fazem mais uma vítima". Ele classificou o artista como "figura pacífica" e demonstrou preocupação com a radicalização política. "Espero que não estejamos caminhando para a barbárie."
Lideranças de terreiros de candomblé da Bahia também publicaram em grupos de WhatsApp mensagens sobre a morte do mestre de capoeira. "Infelizmente nosso povo perde um mestre, cuja vida foi ceifada covardemente e de forma banal. Isso traduz a gravidade dos tempos em que vivemos, porque o fascismo não está brincando e nos chama a tomar atitude. Agora ele, amanhã poderá ser muitos de nós", diz um dos textos.
Enterro de mestre de capoeira vira ato contra Bolsonaro
Além da homenagem ao mestre, o enterro tornou-se um ato de repúdio à candidatura de Bolsonaro. O corpo foi sepultado ao som de uma orquestra de berimbaus. Familiares, amigos, artistas, personalidades negras baianas, secretários de Estado marcaram presença na despedida.
O PT da Bahia, o ex-ministro Jaques Wagner e deputados da legenda aproveitaram o fato para emitir notas contra o que chamaram de "propagação do discurso de ódio na política". O governador reeleito Rui Costa (PT) declarou que pediu à polícia a investigação rigorosa do fato e também pregou contra o ódio.
"Considero inaceitável o assassinato do Mestre Moa do Katendê, nesta madrugada em Salvador, por motivação política. É deplorável que a diversidade de posicionamentos, a maior riqueza da democracia motive perseguições e até mortes. Ou voltamos para a normalidade democrática com garantia de liberdade de opinião e respeito às diferenças ou viraremos um faroeste, uma terra sem lei", disse Jaques Wagner (PT), em nota. A família do mestre não deu entrevistas.