Juliana*, 7 anos, adora ler, brincar de casinha e se divertir com os amigos. Frequentando o 3º ano do Ensino Fundamental, ela conta que sua princesa favorita é a Rapunzel. Entre as leituras, abraça um gibi da Turma da Mônica, em que sua personagem favorita é a baixinha gorducha que inspirou a coleção de Maurício de Souza.
Quem vê a menina sorridente e simpática, que faz companhia ao irmão, Diego*, que ainda está nas fraldas e dá seus primeiros passos, não poderia nem imaginar que ela faz parte de uma estatística cruel e assustadora: está entre as milhares de vítimas de violência sexual em Mato Grosso do Sul.
De acordo com o 11º Anuário de Segurança Pública, divulgado pela revista Exame, o Estado é o líder no ranking de estupros, chegando a registrar 54,4 casos a cada grupo de 100 mil pessoas em 2016. Isso significa um total de 1.458 crimes, considerando apenas os casos que foram registrados através de boletim de ocorrências. Outros milhares permanecem escondidos.
Juliana e Diego* brincam sob supervisão enquanto mãe recebe atendimento - Foto: Wesley Ortiz
Em Campo Grande, conforme a DEPCA (Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente), foram registrados 137 boletins de ocorrência por crime de estupro contra criança até o mês de abril. O total apresentado em quatro meses comprova que pelo menos um caso foi registrado por dia na delegacia.
Juliana faz parte de uma das 30 famílias que são atendidas pelo Projeto Nova, coordenado pela psicanalista Viviane Vaz. Em uma residência na Vila Carvalho, assistentes sociais, psicólogos e voluntários ajudam vítimas de abuso e exploração sexual que estejam em vulnerabilidade social a resgatar a autoestima.
Acolhedor, salão de entrada do projeto também é usado para reuniões e palestras - Foto: Wesley Ortiz
Lá, as vítimas e familiares recebem atendimento psicossocial e terapêutico para superar o trauma. “Todas passam por terapia individual, se é criança, a mãe faz terapia individual e a criança faz terapia com outra pessoa também, separadas. Filhos das vítimas também recebem atendimento, pois muitos são fruto de gravidez indesejada”, conta Viviane.
Violência sem fronteiras
Segundo a psicanalista, a maioria das vítimas atendidas pelo Projeto Nova são mulheres adultas e crianças dos dois gêneros, mas a violência não respeita classe social, cor, religião ou gênero. Filhos das vítimas também precisam de bastante cuidado, pois muitas vezes acabam sofrendo com rejeição e agressão psicológica.
MS lidera ranking de estupros - Foto: Wesley Ortiz
Experiente no acolhimento às vítimas de abusos sexuais, Viviane enumera alguns sinais que crianças podem apresentar em caso de violência. “A criança demonstra através de mudanças emocionais bruscas, dificuldades nas atividades escolares, dificuldade de concentração, ideias suicidas, automutilação”.
“Tristeza, medo, vergonha. Sentimento de estar suja, feia, má, são as palavras que as crianças geralmente usam. Porque a criança, em geral, não sabe dizer o que está acontecendo, não sabe que aquilo é uma violência, então ela fala através do comportamento”, continua a coordenadora do projeto.
Viviane Vaz, coordenadora do Projeto Nova - Foto: Wesley Ortiz
De acordo com Viviane, a falta de apoio da família costuma ser muito doloroso para as vítimas. “O que acontece, em muitos casos, é que s pais não identificam esses sinais e quando a criança chega a falar alguma coisa, às vezes acham que é mentira, mandam ficar quieto, não falar mais isso. O que mais acontece são pais que não acreditam nas crianças”.
“Em geral o fato da mãe e/ou o pai não acreditarem dói mais que o próprio abuso. A falta de proteção dos pais, no geral, é o que causa mais dor. É muito importante que os pais acompanhem os filhos, tenham o diálogo e transmitam segurança, para que a criança possa confiar nesse adulto. É muito difícil a criança ter isso”, explica.
Mural mostra programação e horários de atendimento - Foto: Wesley Ortiz
Maioria dos crimes ocorre em ambiente familiar
Em Mato Grosso do Sul, de acordo com Viviane, 86% dos casos de violência sexual registrados pela Justiça ocorrem em ambiente familiar. “Isso também colabora com o acobertamento. Por isso a gente tem um baixo número de denúncias. Porque isso vai prejudicar a família. Em geral, a criança se sente culpada pelo que aconteceu e não fala”.
Voluntária no Projeto Nova há um ano, a assistente social Glória Eduardo Sotero, 44 anos, atende no local três vezes na semana. Ela é responsável pela triagem dos acolhidos e auxilia no acompanhamento e visitas familiares.
Glória é voluntária há um ano, mas acompanha projeto desde 2011 - Foto: Wesley Ortiz
Segundo ela, cada história carrega uma dor imensurável, por isso prefere não destacar um caso que a marcou mais. Mesmo assim, após alguma insistência, relembra de uma mãe que prostituía a filha para pagar o aluguel. "Isso fez com que a criança ficasse traumatizada e ela só começou a ter resultados, a ter acompanhamento na vida adulta", conta.
No projeto, as famílias atendidas recebem atendimento psicossocial e podem participar de aulas de artesanato, rodas de conversa, palestras educativas e outras atividades. O espaço conta ainda com brinquedoteca, parque infantil, cozinha, sala de reuniões e consultório de dentista. Todo o atendimento é gratuito e a unidade está disponível para doações.
Artesanato criado pelos participantes do projeto - Foto: Wesley Ortiz
Quer ser um voluntário ou procura atendimento? Saiba mais no site da instituição: http://projetonova.com/.
* Os nomes das vítimas foram alterados para proteger a identidade das crianças.