O que é um dia comum? Acordar cedo, preparar um café, deixar as crianças na escola, dar um carinho no cachorro, ir trabalhar? Já pensou que, enquanto você pensa no almoço, alguém morre e outra pessoa ganha na loteria?
Em Mrs. Dalloway, Virgínia Woolf explora apenas um dia na vida de vários personagens, com seus pensamentos, seus sentimentos, suas observações aleatórias... Sua complexidade no extraordinário e no banal.
Usando o fluxo de consciência, linguagem experimental à época (1925), Woolf mostra como o cotidiano é rico em experiências tanto à personagem tida como fútil, representado pela própria Dalloway, à mais complexa, o veterano de guerra Septimus.
Na Inglaterra de 1920, Virgínia acompanha Clarissa e seus preparativos para uma festa que recepcionará ao fim do dia, e Septimus, um ex-combatente com sintomas de transtorno de estresse pós-traumático. Os caminhos de ambos não se cruzam, mas estão ligados pelo contexto histórico, local e interações com outros londrinos.
É incrível que, ao mostrar um evento social de uma dama bem de vida, afeiçoada aos privilégios de sua posição na sociedade e com preocupações banais como a cor das flores da festa e as memórias do passado, a escritora apresenta os efeitos da guerra na Inglaterra. Mais ainda: o papel estabelecido às mulheres, a complexidade do envelhecer e de todas as decisões que fazemos na vida.
Septimus claramente voltou traumatizado da guerra, mas em uma época que havia poucas informações sobre o assunto, quanto mais tratamento adequado. Mesmo delirante, o veterano demonstra sobriedade e traz luz à violência e destruição deixada pela guerra, mesmo para os sobreviventes.
Mas não é preciso estar à beira do colapso para ter um dia comum completamente extraordinário. Passando pela mente das diversas personagens, sentimos a tensão no ar, o encanto e desencanto da realeza, a transformação social, as incertezas do futuro e a dolorosa consciência de que não há retorno ao passado. Tudo isso marcado pelas badaladas do relógio.
Pioneiro na exploração do inconsciente humano por meio do fluxo de consciência, Mrs. Dalloway se consagrou tanto pelo experimentalismo linguístico quanto pelo retrato preciso das transformações da Inglaterra do entre guerras. Misto de romance psicológico com ensaio filosófico, este livro resiste a classificações simplistas e inaugura um gênero por si só. (Descrição da edição Penguin - Companhia das Letras, no Goodreads)
Não é um texto fácil a princípio. Como leitora, comecei desnorteada, literalmente seguindo o fluxo. Em um parágrafo, eu acompanhava Clarissa, no seguinte já ouvia o pensamento de uma criada, outro e estava em um devaneio de alguém, na sequência uma crítica social sobre como o almoço parece ‘magicamente’ à mesa dos abastados, que não se importam com o que está acontecendo na cozinha...
Mas, ao mesmo tempo que a leitura parece desafiadora no começo, simpatizo com a autora logo nas primeiras páginas, que já começam com devaneios típicos de uma mente em constante movimento. Eis que você está lendo este texto e, do nada, um pernilongo zunindo. Atenção desviada. Se livra do inseto. Retoma a leitura. Lembra que precisa regar as plantas. Não é assim a mente humana?
Indo um pouco além, como jornalista, penso nas inúmeras novelas que cada pessoa carrega. A vida é assim. Enquanto escrevo esse texto, alguém vela um familiar e outro comemora a compra de um carro. Ao mesmo tempo, surge uma grávida de Taubaté e um tsunami desmantela uma cidade que não conheço o nome. A vida não para.